[RESENHA] "O aprendiz de herege": A heresia de hoje é a ortodoxia de amanhã

Finalizei "O aprendiz de herege", de Ellis Peters (1913-1995).


Ao contrário do que afirmei anteriormente aqui, a trama não se refere a saber se um monge suspeito de heresia pode ser enterrado na Abadia.

Na verdade o suposto herege seria William de Lythwood, que saíra em peregrinação pela Terra Santa e é informado que ele simpatizara muito com as doutrinas de Orígenes, em oposição à então reinante Teologia Agostiniana, que preconiza a graça de Deus, a eleição eterna e a preterição eterna, abominando a sinergia e o livre-arbítrio. Foi ele que morreu quase na volta para casa, depois de passados sete anos em viagens, e foi trazido pelo seu servo Elave para ser enterrado na Abadia.

Junto com o morto, Elave trouxe uma caixa maciça para ser entregue à Fortunata, sobrinha de criação de William, contendo o seu dote para casamento.

A caixa de Fortunata, que não fora aberta ainda em razão da ausência de seu pai de criação, despertou a curiosidade de todos, inclusive de Aldwin, que tentou ver o seu conteúdo. Outra pessoa viu, trocou-o por moedas de prata e suspeitou que seria desmascarado por Aldwin, que ele pensara ter visto o conteúdo também. E a trama gira em torno desse conteúdo. Gira não: rodopia.

Prosseguindo, a discussão acerca da suposta heresia de William ocupou bem poucas páginas e não teve grande repercussão, tendo ele sido enterrado em solo sagrado, dentro dos muros da Abadia de Shrewsbury. Mais se mostrava uma disputa de braço-de-ferro entre o Abade Radulfus, concessivo e tolerante, e Gerbert, rigoroso e apologista, um cônego enviado por um Arcebispo e muito poderoso na Igreja naqueles idos de 1143.

Mas não parou por aí.

Elave, que até então teria morado na casa de William e trabalhado para ele até ser convidado para a peregrinação, dá sinais de simpatia com a "heresia" dde William, pois afirmava que toda pessoa nasce em estado não contaminado pelos pecados comissivos, podendo uma criança ser salva eternamente caso morra sem batismo, ao invés de ser lançada no Limbo. Do mesmo modo, não crê na eterna predestinação dos santos, doutrina caríssima à Santo Agostinho, porque pensa que se assim é, se o número dos salvos e dos perdidos já está certo e é imodificável, de que adiantaria rezar ou ter uma vida santa? E defende que o homem é culpado dos pecados que comete, por suas ações ou omissões e não por uma "decisão eterna".

Isso bastou para ele ser julgado por heresia, por denúncia de Aldwin, que atualmente ocupava o cargo de contabilista que antes da peregrinação era de Elave. Ele o denunciou por medo de que fosse demitido para Elave ser readmitido. Mas para sua surpresa, na casa dos Lythwood soube-se do que Aldwin fizera e a família lhe garantiu que demiti-lo nunca teria passado por sua cabeça.

Diante disso, ele fica apavorado por ter, possivelmente, acusado injustamente a Elave e ele ser condenado por isso. Parte para tentar desfazer a denúncia, mas misteriosamente é morto com uma facada nas costelas, nos arredores da cidade.

Quanto ao julgamento de Elave, o Bispo Roger de Clinton vai a Abadia para tal finalidade e contrapõe algumas das doutrinas agostinianas com o que dizem as Sagradas Escrituras, mostrando que Agostinho seria apenas uma opção doutrinária, mas não a palavra final. Afinal, para quem conhece a Igreja Católica, sabe que ela é muito mais tomista que agostiniana e que Santo Tomás de Aquino defendia quase as mesmas teses aceitas e divulgadas por Elave e esta foi, de certa forma, a doutrina soteriológica adotada pela Igreja desde então, deixando o agostinianismo relegado às Ordens Agostinianas existentes.

Dizer mais que isso sobre a trama seria dar spoiler, então paro por aqui.

Quanto aos personagens, não se mostraram marcantes. Eu tinha dito que pelo fato do Irmão Cadfael ter sido "novamente" chamado pressupunha-se que ele seria o grande investigador abacial, mas não era nada disso.

Cadfael era um hortelão e boticário. Nada mais, nada menos.

Bem verdade que ele faz deduções, conclusões e tal, mas nada disso é exclusivo dele, tanto que a mesma conclusão decisiva acerca do suposto assassino de Aldwin que ele teve, a Fortunata também teve, quase ao mesmo tempo na narrativa. Ou seja, ele não é nada excepcional, tem poucas cenas em que sua figura é preponderante para a resolução da trama e as personagens coadjuvantes acabam ganhando muito mais notoriedade e visibilidade do que ele.

Para se ter uma melhor e final ideia, quando já se sabia quem era o assassino de Aldwin, o motivo e tinham ido ao seu encalço, Cadfael é mostrado tomando conta dos cavalos, sem nada fazer, sem tomar parte no embate que se desenrolou, que teve como atores principais Fortunata, o xerife e Elave, além do assassino (que não direi quem é, claro). Ou seja, ele não foi nada original nem necessário na resolução da trama, tampouco foi homem de ação no momento do conflito físico.

Ou seja, para um romance comparado ao "O nome da Rosa", Cadfael não lembra nem um pouco o Frei William de Baskerville, este sim com protagonismo evidente e atuante durante o desenrolar da trama, sendo o efetivo responsável pela solução dos casos de assassinato naquele mosteiro beneditino, no qual novamente é tratado o tema do agostinianismo e que, curiosamente, o acesso às obras de Aristóteles é restrito na biblioteca monasterial.

Pode ser que Cadfael seja melhor explorado nos demais livros da autora, mas neste aqui não foi. Muito embora a leitura seja das mais agradáveis e a trama nos prenda a leitura porque é muito bem construída e o fato de não ter um protagonista condutor das investigações não afeta em nada, vez que as demais personagens suprem tal deficiência, cada uma contribuindo à sua maneira.

Assim, só posso recomendar a leitura e aguardar para ler outros livros desta autora.

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