[RESENHA] Um trópico caliente esse!!
Que dizer sobre o "Trópico de Câncer" de Henry Miller?
Dizer que é obsceno é muito reducionista.
Dizer que é uma narrativa não linear é o mais óbvio dos óbvios. Basta abrir o livro e perceber.
É um diário alegorizado? Pode ser.
É tão revolucionário assim? Agora até pode parecer historinhas de ninar, mas na década de 1920 em pleno fervor moralista norte-americano... imagine!
O livro foi escrito quase como se escreve um diário: vários pensamentos soltos, que dentro de seu bloco até é possível identificar uma sucessão temporal linear, mas de um capítulo à outro isso é muito difícil de ser identificado, mais parecendo as lembranças de eventos vividos pelo protagonista do que fatos que se iam desenrolando à medida que lemos.
Não se trata de um romance epistolar, pois ninguém está escrevendo cartas ali, tampouco é dito que se trata realmente de um diário, mas é pela construção dos textos e capítulos que isso pode ser inferido, sem jamais ser admitido. Não há, obviamente, um início do tipo "Querido diário...".
No início a leitura se mostra arrastada, tediosa, como quando estamos refletindo sobre um ponto e diversos outros surgem para ocupar um pouco desse tempo, mas aos poucos, quando tomamos mais contato com a escrita e vemos que não haverá modificação, a adaptação corre naturalmente.
Basicamente o livro trata das frustrações do protagonista na Europa, particularmente na França, em face ao seu desprezo pelos costumes, moral e religião norte-americanas e vai caminhando para a consciência de que ali também a "vida-livre" é mais ilusória do que factível.
Infantilmente, para mostrar toda sua aversão ao american way of life o autor recheia o romance com palavrões, palavras de baixo calão, endeusamento do sexo e da embriaguez, narrando suas peripécias com as mulheres e bebidas a cada novo evento e nos informando de que ele não tinha renda fixa e, por conta disso, vivia a procura de um mecenas, que geralmente eram seus amigos.
Um pouco da obra é uma autobiografia e a maioria dela é um aformoseamento da vida desregrada, já que não se pode dar crédito à todas as peripécias que Miller diz ter vivido ali.
A linha ideológica é simples: nos EUA ele não tinha como viver bem, foi para a Paris de 1930, tentou ali e viu que era ilusória a tentativa de "vida livre de regras" e que passar de pub em pub, de bordel em bordel, de cama em cama e de bolsos em bolsos de amigos não resolvia nada. A mesma França que lhe parecia tão acolhedora também não lhe dava muita chance de sobreviver e Miller deixa transparecer essa frustração em diversas passagens, sem o admitir claramente, já que não há revolucionário sem uma revolução em que se engajar. Também coloca nos atos de seus amigos muitas insatisfações e desejos de voltar aos EUA (um dos amigos ele até ajuda a fazer isso, prometendo cuidar da amante dele), o que não deixa de ser sugestivo: ali não estava bom, era fácil voltar aos EUA, mas ele, orgulhoso, não voltaria, embora conseguisse propiciar o tal retorno a quem quer que fosse.
Como já deve ter ficado claro, o livro não tem um enredo no qual se parte de um ponto, se caminha por uma linha e chega-se a um ponto final culminante, pois a cada novo capítulo uma nova narrativa/lembrança é apresentada sobre fatos marcantes a Miller em dado assunto.
Eu o recomendaria? Obviamente que sim.
Embora a leitura seja bem contemporânea e tentando mimetizar a vida comum de alguém comum, considerando os exageros de alguns escritores em dourar a própria pílula, como literatura de protesto é muito recomendável. Muito embora ele parta da premissa que para fazer um protesto antimoralista seja preciso contrariar e proscrever frontalmente o objeto da afronta, agindo em conformidade com o protesto enviesado (o que exagera em muito a conduta desejável em face à conduta aceita e moralmente determinada), o leitor culto é bem capaz de filtrar os extremos e chegar a um meio termo plausível pois, dando um exemplo, se a moral norte-americana ditava que o casamento era heterossexual e monogâmico, não é preciso se envolver com dúzias de mulheres e homossexuais para protestar contra isso, embora o livro sugira que ele se envolvia com homossexuais e era óbvio que tinha dúzias de mulheres em sua vida.
Mas claro que uma atitude branda não chamaria a atenção, então acho que a fórmula teria que ser essa mesma. E, conquanto o livro não seja chocante, nem seu linguajar chulo inovador (visto que temos muita literatura contemporânea que abusa da promiscuidade bem declarada e pormenorizadamente descrita), se o leitor não for um consumidor de páginas e atentar, à cada parágrafo, para o seu contexto de época, entenderá que a proposta foi bastante ousada. Hoje, não, porque existem diversas literaturas eróticas disponíveis, mas com uma qualidade meio brega, óbvia demais e objetificante demais.
Miller, embora descreva situações picantes, não perde a galhardia, tão incomum e rara nos autores de literatura sensual atual. Ele não tem nada a ver com o Marquês de Sade, mas busca mostrar as excitantes experiências que se pode ter fora dos EUA por um artista incompreendido e nisso ele se sai muito bem, já que não contrai as doenças que seus amigos contraem nessa novo modo de vida.
Mas salvo um grande engano, me parece que o livro dá a entender que, ainda que se esteja protestando contra uma moralidade castrante e limitadora, a vida reduzida à bebida, sexo, farra e dinheiro dos outros, é uma verdadeira porcaria também e isso é inegável, porque a atitude substitutiva narrada, nada mais era que um escape que deu errado.
Leitura feita, leitura que se segue.
Sigamos, então.
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