[RESENHA] Os Irmãos Karamazov
Os irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski
Leitura iniciada em 05/08/2018, juntamente com a leitura de Proust (No caminho de Swann), e finalizada em 03/11/2018.

Eu vejo Dostoiévski mais cru, direto... Detalhista mas direto, ao passo que Proust me parece ter um discurso mais onírico, com uma fluência um tanto Zen-Budista, fala/escrita cadenciada, pausada e contínua... Difícil explicar, mas um tanto mais elegante, menos "gente-correndo-na-rua", que me parece ser mais a fluência de Dostoiévski.
Outra diferença entre ele e Proust é que este dá muita vazão à descrição das impressões, sensações e sentimentos de seus personagens, descrevendo minuciosamente cada evento sob o prisma subjetivo num fluxo contínuo de consciência livre, ao passo que em Dostoiévski o leitor é sempre um espectador dos fatos ocorridos com os personagens. Embora a obra contenha descrição de sentimentos a abordagem é diferente: o leitor não é apresentado à psiquê do personagem, mas é sempre colocado na posição de alguém que vê o sofrimento, as angústias e os atos do personagem, sem embarcar nas suas motivações mais íntimas.

Ok, esse paralelo não é tão evidente e acho que a simplicidade deve imperar. Então, simplificando, podemos dizer que Proust prioriza e simpatiza com a interioridade de seus personagens enquanto que Dostoiévski priorize as ações dos personagens que, como consequência, podem alterar seus ânimos e encadear suas volições. Não é que ele não aborde o perfil psicológico de seus personagens, mas sim que o ponto de observação dele, nessa obra, é o narrador que ficou sabendo da história e narra o comportamento dos personagens, arriscando suposições sobre seus sentimentos, logo, a psiquê de cada um é abordada sob a ótica do observador e não do próprio indivíduo que a explora ou evidencia. O leitor apenas toma nota da psiquê dos personagens pelo que cada uma fala e faz, não tanto pelo que cada uma pense. O único a "pensar", em toda a trama, é o narrador que conta os fatos.
Pois bem, passando à obra em si, "Os irmãos Karamazov" segue a receita que já vi em Tolstoi ("Guerra e Paz") de fazer detalhadas descrições do entorno do personagem, às vezes entremeando narrativas que não dizem respeito diretamente a ele, mas mantendo um ponto de contato, para que o leitor seja informado acerca das respostas sociais do personagem aos fatos acontecidos, como já deixei claro.
Diferentemente de autores que enfatizam o fluxo de consciência, Dostoiévski prefere que a identidade e psiquê de seus personagens sejam construídas "de fora para dentro", mostrando como as interações sociais identificam, moldam e evidenciam o caráter de cada um.
Isso porque o ápice desta obra, todos sabem, é o "parricídio justificado", porém vai-se quase meia obra até que se chegue a este fato, sendo o espaço até aqui preenchido com situações bastante ordinárias e comuns à vida de muitos indivíduos, alçando certas vezes algumas divagações filosóficas que, nos dias atuais, não seriam nada usuais nos jovens, mas numa sociedade que buscava muito se identificar com a cultura européia, notadamente francesa (segundo lido em "Guerra e Paz"), pode até ser que os jovens se debruçavam sobre divagações filosóficas diversas em suas conversas informais, embora isso pareça bastante estranho aos brasileiros atuais.
O ENREDO
Paulatinamente o leitor é apresentado aos irmãos Karamazov, Aliéksiei/Aliócha/Alióchchenka (o monge), Ivan/Vânia/Vanka (ateu?) e Dmitri/Mítia/Mítienka (primogênito e libertino), e ao pai, Fiódor, além de ser inserido nos problemas que cada um tem individualmente e com os demais.
Dentre os personagens secundários está o empregado Smierdiakóv, suposto "filho natural" (termo usado antigamente para denotar filho bastardo) de Fiódor, com quem os irmãos Karamazov tinham diferentes entrosamentos.
Aliéksiei questiona sua vocação após a morte do Padre Zózima (existem diversas variações da grafia deste nome), seu mentor espiritual e considerado um santo vivo. Dmitri disputa o amor de uma cortesã com o pai e é retratado como um pródigo libertino. Ivan questiona sempre a liberdade oposta à autoridade de Deus.
Além destes personagens, necessário mencionar Grúchenhka, a cortesã disputada por Dmitri e Fiódor, e Catierina, ex-noiva de Dmitri, com a qual rompeu após conhecer Grúchenhka e de quem pegou três mil rublos, quantia esta que acabou se tornando o pivô da acusação de parricídio e do questionamento quanto a sua moral.
Fiódor não era nenhum exemplo de pai, marido ou de pessoa, vez que é narrado que se casou por interesse na herança de suas duas falecidas esposas e a trama perpassa a dúvida se Dmitri foi preterido na divisão da herança de sua mãe pelo próprio pai. Diante disso o livro narra várias vezes as diferenças dele com Fiódor sempre por causa de dinheiro e piorando quando Grúchenhka entra em cena e ambos, pai e filho, buscam conquistá-la.
Com tal intento, Dmitri busca conseguir dinheiro e Fiódor se recusa a dar a parte da herança que o filho entende fazer jus, chegando ambos a se agredirem e isso ser presenciado por outros. Dmitri é mostrado em diálogo com diversas pessoas para tentar conseguir três mil rublos com os quais entende conseguir conquistar Grúchenhka e por fim aceita dinheiro de sua ex-noiva. Catierina disse que o dinheiro seria para entregar a parentes daqui um mês, sugerindo testar Dmitri se ele aceitaria, já sabendo que ele a trocara pela outra.
Também é dito que Dmitri gastara muito dinheiro numa taverna com uma festança que pagou para os presentes e isso é usado em seu julgamento para questionar se ele teria ou não intenção de devolver o dinheiro de Catierina e se teria reservas em matar o pai por dinheiro.
Esse é o fio central. Recheando essa trama, que culmina com o esclarecimento do assassinato e o julgamento de Dmitri, o autor relata vários diálogos e situações dos demais irmãos Karamazov e de Smierdiakóv para que o leitor vá sabendo quem são, o que pensam e o que poderiam fazer ou de fato fizeram.
Dostoiévski vai nos fornecendo informações sobre a psiquê de seus personagens dessa forma, por meio de diálogos e narrativas, evitando aquele recurso de expor os pensamentos do próprio personagem. Isso faz surgir uma dúvida, já que há uma narrador ciente dos fatos: realmente acabamos conhecendo intimamente cada personagem ou apenas aquilo que externamente alguém observou acerca deles e resolveu relatar? Para isso não há uma resposta fácil.
Por exemplo, acerca de Aliéksiei é mostrado, logo quando ele aparece no livro, sua devoção ao Padre Zózima, considerado um santo vivo, seu desejo de seguir-lhe os passos, contrastado pelo vaticínio do ancião de que ele deveria deixar o mosteiro. Aliócha reluta em aceitar isso, mas quando o ancião morre e seu corpo começa a se decompor rapidamente, surge nele um questionamento acerca da real santidade de seu mestre, já que a história canônica relataria outros santos que tiveram o corpo preservado e ele acaba desgostando da vida monástica e sai do mosteiro.
Sobre Ivan são mostrados diversos diálogos nos quais ele luta para defender seu livre-pensamento contrariando a crença religiosa, fala o célebre "Se Deus não existe tudo é permitido", são relatados os seus dilemas éticos e sua paulatina sucumbência à loucura.
Esses fatos podem parecer desconexos, mas se ligam quando do julgamento de Dmitri.
Voltando à trama, Dmitri fica extremamente enciumado de que Gruchenhka aceite a proposta de Fiódor para se casar com ele e faz verdadeira vigília na casa de ambos e Smierdiakóv lhe relata quais são os sinais combinados entre Fiódor e Grucha para que ele abra a porta, já que Dmitri já tinha espancado o pai e este o temia, mantendo-se trancado em casa.
Dmitri espiona Grucha e pensa que ela está em casa de um benfeitor, mas quando retorna a casa dela e sabe por meio da criada que ela não se encontra, imagina que esteja na casa de sua pai e corre para lá, dá os sinais, seu pai aparece, Dmitri imagina então que Grucha não esteja ali e, sem ser visto pelo pai, tenta sair quando é agarrado por Grigori quando tentava subir pela escada e o golpeia. Volta a casa de Grucha e soube que ela partira para outra cidade para se encontrar com seu primeiro amor e corre para lá também, encontra-a com o "amor" numa taverna, gasta muito dinheiro pagando uma festa ali, pois pensa em se suicidar no dia seguinte.
Porém, neste meio tempo, autoridades judiciárias e policiais chegam até ali para prendê-lo pelo assassinato do pai.
Seguem-se os diálogos da prisão, o julgamento (cujas atuações da defesa e da acusação são ímpares!), as reviravoltas no caso, permeado por situações vividas por Aliócha e os meninos que conheceu, que mais mostram um pouco a mais de seu caráter já anteriormente começado a ser evidenciado.
Pois bem, o que me pareceu um tanto estranho na narrativa é que, depois de centenas de folhas em que o narrador "se lembra dos fatos principais" acerca do ocorrido, Smierdiakóv, já pior de sua saúde, confessa ao também doente e quase-louco Ivan, ser ele o assassino de Fiódor, esclarecendo o motivo pelo qual o criado Grigori viu uma porta aberta (ele é quem a usou) e que matou Fiódor com uma peça ali da casa mesmo, a qual limpou e colocou no mesmo lugar. Disse que fingira o ataque epilético do dia da vigília, mas que no dia seguinte teve um ataque real e por isso se tornou insuspeito e entregou o dinheiro roubado a Ivan.
Ou seja, passamos os quatro últimos capítulos do livro já sabendo quem é o assassino, mas a estória se arrasta apenas para que Dostoiévski tente, ao seu modo, nos comunicar as idiossincrasias dos personagens, uma vez que ele nunca recorre à autoanálise, mas sim por meio das respostas dos personagens às situações em que se encontra.
E por fim, o livro termina sem que saibamos se o plano de resgate de Dmitri foi posto em prática, mas isso não é problema, pois a discussão que o autor pretendeu não envolvia epopeias mas sim o caso das relações familiares, vez que o parricídio de fato ocorreu, mas não pela mão do "filho legítimo", mas sim pela mão do "filho natural".
Muitos comentaristas anteriores identificaram nessa obra algo relativo à vontade de potência, de Nietzsche, mas confesso que não percebi tal situação pertinente aos personagens. Não vi nenhum deles retratar a filosofia nietzschiana tal qual a conheço porque nenhum deles se proclamava tal qual o Super-Homem de "Assim falava Zaratustra", mas muito ao contrário, todos se mostraram mais como efeitos do meio em que vivem, ora aceitando-o, ora repelindo-o, mas sem qualquer insinuação de autodeterminação absoluta.
O que teria sugerido essa identificação? O simples querer matar o pai sendo concretizado mediante subterfúgios pseudojustificantes? Autojustificativa? Não vi dessa forma porque a doutrina de Nietzsche não se concretiza com atos isolados de rebelião social, como o plano de Smierdiakóv... isso não foi um ato de autêntico auto-governo moral, mas sim um simples caso de assassinato.
Obviamente que as discussões envolvidas podem ter várias outras nuances, mas pelo que entendo, Nietzsche não seria um destes encaixes, já que a liberdade que ele apregoa não é a liberdade de contrariar, mas sim a liberdade de autogestão, que é muito mais que apenas se indispor com regras coletivas, morais ou sociais.
O que teria sugerido essa identificação? O simples querer matar o pai sendo concretizado mediante subterfúgios pseudojustificantes? Autojustificativa? Não vi dessa forma porque a doutrina de Nietzsche não se concretiza com atos isolados de rebelião social, como o plano de Smierdiakóv... isso não foi um ato de autêntico auto-governo moral, mas sim um simples caso de assassinato.
Obviamente que as discussões envolvidas podem ter várias outras nuances, mas pelo que entendo, Nietzsche não seria um destes encaixes, já que a liberdade que ele apregoa não é a liberdade de contrariar, mas sim a liberdade de autogestão, que é muito mais que apenas se indispor com regras coletivas, morais ou sociais.
CONCLUSÃO
Muito embora minhas resistências quanto à discussão filosófica pretendida por Dostoiévski nesta obra, é inegável que este é um romance de peso, que retrata tão bem quanto Tolstói a sociedade russa de época e que levanta temas polêmicos acerca de tudo que circunda os personagens, seja o parricídio, paladino da obra, seja a prodigalidade de Fiódor, seja seus casamentos por interesse financeiro, seja a "quase-meretriz" que seduz e brinca com pai e filho e se redime ao final, sejam os questionamentos pueris de Aliócha acerca da santidade de Zózima ou a loucura de Ivan ou suas crenças filosóficas peculiares.
Por todos estes pontos esta é uma obra que deve ser lida com bastante cuidado, atenção e com a mente aberta.
Não é à toa que é uma das obras mais emblemáticas de todos os tempos.
Comentários
Postar um comentário